julho 21, 2005

Leituras (IV)

"Quando eu era pequeno, punha-me a olhar para uma imagem de Deus Nosso Senhor de pé, em cima de uma nuvem que havia no Antigo Testamento, contando às crianças e ilustrando com gravuras de Gustavo Doré, que costumava folhear. Era um senhor bastante velho, com olhos, nariz, uma grande barba, e eu achava que, como tinha boca, também devia comer. E, se comia, também devia ter intestinos. Mas ficava logo assustado porque, embora a minha família fosse quase ateia, percebia bem a blasfémia que era pensar que Deus Nosso Senhor tinha intestinos. Sem a mínima preparação teológica, com toda a espontaneidade, a criança que eu era já compreendia, portanto, a fragilidade da tese fundamental da antropologia cristã, segundo a qual o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Das duas, uma: ou o homem foi criado à imagem de Deus e Deus tem intestinos, ou Deus não tem intestinos e o homem não se parece com ele. Os gnósticos antigos sentiam-no tão claramente como eu, aos cinco anos. Para acabar de uma vez por todas com este maldito problema, Valentino, grão-mestre da Gnose do século II, afirmava que "Jesus comia, bebia, mas não defecava" . A merda é um problema teológico mais difícil que o mal. Deus ofereceu a liberdade ao homem e, portanto, pode admitir-se que ele não é responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela existência da merda incumbe inteiramente àquele que criou o homem e só a ele."

Milan Kundera, in: "A insustentável leveza do ser"

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