abril 12, 2007

Comparar o mesmo subúrbio

Depois da crónica “Elogio do subúrbio” do António Lobo Antunes, que eu aqui postei ! Deixo-vos agora com o "mesmo subúrbio” (em tom de carta ao António), por: (RAP) Ricardo Araújo Pereira. Um subúrbio de hoje, que segundo o Ricardo, na época do António era bem mais bonito, e tinha gajas mesmo mesmo boas !

Boa leitura

Quando eu era pequeno também vivia em Benfica, António, mas já não vi nada do que tu contas. Nem quintinhas, nem casas baixas, nem o cheiro dos cabedais do sapateiro (a gente já nem ia ao sapateiro: quando os sapatos se estragavam, iam para o lixo - e o lixo, parecendo que não, tem muito menos graça que a loja do sapateiro, além de que cheira pior) nem senhoras beatas que transportam a Sagrada Família numa caixa, de casa em casa (aliás, no meu tempo, nenhum desconhecido nos visitava a casa, excepto três senhores encapuzados que, uma noite, passaram por lá. Mas também deviam ser gente religiosa porque, apesar de não trazerem a Sagrada Família, levaram um terço de prata da minha mãe) nem acácias, nem cegonhas, nem pavões,
Eu tinha a mercearia do senhor Fernando (a primeira vez que vi um rato foi na mercearia do senhor Fernando, uma ratazana grande e bonita, com um rabo muito comprido e ar feliz. Os produtos do senhor Fernando eram mesmo bons) um maluco que tinha sofrido um desgosto de amor no tempo em que não era maluco (maluco era o que nós lhe chamávamos. Tu, que és médico, provavelmente designá-lo-ias com um termo clínico qualquer, tipo « chalupa », ou assim) seja como for agora era maluco e dedicava-se a recolher papelão e ficava doido ( admitindo que os malucos podem ficar doidos ) sempre que alguém no bairro comprava um electrodoméstico, não saía da porta do prédio, à espera que deitassem fora a caixa de cartão
- Tem caixotes?
estava sempre a perguntar a quem encontrasse na rua
- Tem caixotes?
repara, António, que não te estou a imitar, não repeti a frase para obter qualquer efeito estilístico, o que se passa é que o maluco, coitado, era mesmo muito repetitivo
- Tem caixotes?
olha, lá está ele outra vez
(uma vez, o irmão do maluco, que não era maluco, descobriu que a mulher o enganava e deu-lhe um tiro. E o maluco contou a história e disse, com a sua voz arrastada de maluco:
- O meu irmão é maluco) e além do maluco havia também um bêbado, que dizem que era médico em S. José (uma vez parti a cabeça, fui de urgência para S.José e estive sempre à coca de ver se me aparecia o bêbado, não fosse ele amputar-me uma perna em vez de me coser a cabeça) e havia ainda a senhora da padaria, que acumulava as funções de padeira com porteira do meu prédio e chefe do centro de inteligência da rua. Reunia informações junto de todas as aus congéneres porteiras e relatava uma súmula aos clientes que levassem pão num valor superior a 50 escudos. Uma vez, o marido da porteira, que era da GNR, afixou na entrada do prédio um papel azul de 60 linhas com selos fiscais e tudo, e escreveu à mão a frase «As órdes da porteira são para serem cumpridas». Depois desse dia nunca mais andei de elevador com a porta aberta
E foi essa padeira que, um dia, quando fazia comigo o rescaldo de um erro de um certo Dínamo de Kiev-Benfica, disputado na véspera (além de conhecer profundamente a vida dos meus pais e de toda a vizinhança, a padeira também sabia muito de futebol) me respondeu, na altura em que eu manifestei preocupação pelo facto de o Rui Águas ter partido um pé:
- Ai partiu? É que eu julgava que fosse fractura.
Foi nesse momento que eu decidi que ia escrever textos humorísticos, e que um dia haveria de inventar alguma coisa tão engraçada como «Ai partiu? É que eu julguei que fosse fractura». Ainda espero por esse dia. E é capaz de ser por isto, António, por tu teres vivido num subúrbio muito melhor que o meu, que hoje és um grande escritor e eu sou só um palerma. Assim não vale, pá.

Ricardo Araújo Pereira

Sem comentários: