abril 10, 2007

Elogio do subúrbio

"Cresci nos subúrbios de Lisboa, em Benfica, então quintinhas, travessas, casas baixas, a ouvir as mães chamarem ao crepúsculo
- Vííííííííítor
num grito que, partido da Rua Ernesto da Silva, alcançava as cegonhas no cume das árvores mais altas e afogava os pavões no lago sob os álamos. Cresci junto ao castelito das Portas que nos separava da Venda Nova e da Estrada Militar, num país cujos postos fronteiriços eram a drogaria do senhor Jardim, a mercearia do Careca, a pastelaria do senhor Madureira e a capelista Havaneza do senhor Silvino, e demorava-me à tarde na oficina de sapateiro do senhor Florindo, a bater sola num cubículo escuro rodeado de cegos sentados em banquinhos baixos, envoltos no cheiro de cabedal e miséria que se mantém como o único odor de santidade que conheço. A dona Maria Salgado, pequenina, magra, sempre de luto, transportava a Sagrada Família, numa caixa de vivenda em vivenda, e os meus avós recebiam na sala durante quinze dias essas três figuras de barro numa redoma embaciada que as criadas iluminavam de pavios de azeite. Cresci entre o senhor Paulo que consertava com guitas e caniços as asas dos pardais, e os Ferro-O-Bico cuja tia fugiu com um cigano e lia a sina nas praias, embuçada de negro como a viúva de um marujo que nunca deu à costa. Os meus amigos tinham nomes próprios tremendos
(Lafaiete, Jaurés) e habitavam rés-do-chão de janelas ao nível da calçada onde se distinguiam aparelhos de rádio gigantescos, vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. O cão da fábrica de curtumes acendia latidos fosforescentes nas noites de julho, quando o pólen da acácia me chovia nas pálpebras, eu, morto de amores pela mulher do Sandokan, descobria-me unicórnio trancado na retrete da escola, e o brigadeiro Maia, de boina basca, descia à Adega dos Ossos a gesticular contra o regime. Na época em que aos treze anos me estreei no hóquei em patins do Futebol Benfica, o guarda-redes enchumaçado como um barão medieval apontou-me ao pasmo dos colegas
- O pai do ruço é doutor
no que constituiu de imediato a minha primeira glória desportiva e a primeira tenebrosa responsabilidade, a partir do momento em que o treinador, a apalpar-me os músculos com os olhos, preveniu numa careta de dúvida
- Sempre estou para ver se lhes chegas ó ruço que o teu pai no ringue era lixado para a porrada.
O dono da Farmácia União jogava o pau, a esposa do proprietário da Farmácia Marques era uma grega sumptuosa de nádegas de ânfora e pupilas acesas, que me fazia esquecer a mulher do Sandokan ao vê-la aos domingos a caminho da igreja, o sineiro a quem chamavam Zé Martelo e que tocava o Papagaio Loiro na Elevação da missa do meio-dia em vez do A treze de Maio obrigatório, possuía uma agência funerária cujo prospecto-reclame começava « Para que teima Vossa Excelência em viver se por cem escudos pode ter um lindo funeral?», e eu escrevia versos no intervalo do hóquei, fumava às escondidas, uma das minhas extremidades tocava o Jesus Correia e a outra Camões, e era indecentemente feliz.
Hoje, se vou a Benfica não encontro Benfica. Os pavões calaram-se, nenhuma cegonha na palmeira dos Correios
(já não existe a palmeira dos Correios, a quinta dos Lobo Antunes foi vendida)
o senhor Silvino, o senhor Florindo e o senhor Jardim morreram, ergueram prédios no lugar das casas, mas eu suspeito que por baixo destes edifícios de cinco e seis e sete e oito e nove andares, num ponto qualquer sob as marquises e sucursais de banco, o senhor Paulo ainda conserta, com guitas e caniços, as asas dos pardais, a dona Maria Salgado ainda trota de vivenda em vivenda com a Sagrada Família na sua redoma embaciada, o Lafaiete e o Jaurés jogam ao virinhas na Calçada do Tojal cercados de vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. Não há pavões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa, resiste. Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro, furando as ondas, de um navio submerso. A acácia basta-me. Arrasaram as lojas e os pátios, não tocam o Papagaio Loiro no sino, mas a acácia resiste. Resiste. E sei que junto do seu tronco, se fechar os olhos e encostar a orelha ao seu tronco, hei-de ouvir a voz da minha mãe chamar
- Antóóóóóóóónio
e um miúdo ruço atravessará o quintal, com um saco de berlindes na algibeira, passará por mim sem me ver e sumir-se-á lá em cima no quarto, a sonhar que ao menos a mulher do Sandokan não o obrigaria nunca a comer puré de batata nem sopa de nabiças durante o tormento do jantar."

António Lobo Antunes In: Livro de Crónicas

( As crónicas do António têm o poder de encantar...pelo menos a mim!)

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