Calma!
Extraordinariamente calma.
Havia passado tempo demais em cogitações que agora não faziam o mais pequeno sentido. Sabia que era o que queria, que iria ser a melhor das resoluções. Agradava-lhe a ideia, sem dúvida! Faltava ainda um pouco para se sentir bem consigo. Aproveitou para olhar tudo mais uma vez. Daqui a nada, não haveria lugar para pensar nela. Daqui a nada a campainha tocaria. Como lhe irritava aquele toque! Como lhe trazia a pior das recordações, como lhe trazia de novo tudo o que sentiu, toda a revolta.Levantou-se, olhou-se no espelho do quarto.
Primeiro toque…
Belíssima, como sempre! Elegante tal como ele gostava!
Olhou aquela gaveta uma última vez, respirou fundo, como se tomasse fôlego…
Novo toque…
Abriu a porta.
Ele era, tal como diziam as colegas na empresa, de fazer parar o trânsito! Sortuda! Como sentiam raiva dela! Brincavam, claro! Ela ria, dizia que exageravam, e que ela também não era de deitar fora, que faziam o par perfeito, que tinham tudo para dar certo! Sentiu como ele a olhou, adivinhando o que lhe ia no pensamento, enquanto tomava dele as flores…
“ – Não era para ir jantar fora?” – perguntou-lhe, beijando-a docemente. Ela sorriu, feminina, sensual, encostando-se ainda mais a ele.
“ – Hoje não, Amor! “ – sussurrou-lhe ao ouvido – “ – Hoje vamos ser só nós!... ”
“ – Se me tivesses dito, tinha trazido o vinho de que tanto gostas! “ – disse-lhe, enlaçando-lhe a cintura, tentando que ela não resistisse, que se deixasse seduzir.
“ – Ensinaste-me tanto, meu querido! Fui à loja de vinhos do teu amigo e ele arranjou-me um outro que tinha a certeza que tu adoravas. Percebeu que eu queria algo muito especial, que não era só um encontro, que teria que ser só nosso e disse-me que trouxesse aquele que está lá na cozinha e que tu saberias como o tratar para que tivesse o sabor perfeito! A música era a deles e enquanto ela ultimava o último toque no jantar que havia sido feito com o cuidado posto nas coisas que não vão repetir-se nunca mais, olhou-o e viu a expressão dele, olhando a garrafa. Sorriu. Perfeito! Ele nem se deu conta de que perdeu a segurança, a altivez, por um brevíssimo instante. Adivinhou-lhe o que ele pensou e ficou satisfeita.
“ – Tratas então do vinho? “ – perguntou-lhe – “ – Aprendi muito contigo mas deixo-te a tarefa de o abrires e chambrear.” – Sabia que ele a olharia exactamente assim, como olhou.
“ – De facto, minha querida! “ – retorquiu, enquanto já abria a gaveta onde estava o saca-rolhas – “ – Não há dúvida que não deixas nada por mãos alheias! Enquanto este néctar toma o aroma a que vamos ter direito, preparo um aperitivo? – Já era ele de novo, seguro de si, bonito como sempre.Ela aproximou-se dele e enrolando os braços no seu pescoço, encostou a cabeça ao seu peito e encetou um passo de dança. Tinha receio que ele lhe notasse uma certa ansiedade, mas, não. Já dançava, pegando-lhe na mão, encostando-a aos seus lábios.
“ – Sabes que te adoro? Que me encantaste? Sabias que não consigo resistir-te? “ – Ela fechou os olhos. Queria tudo naquele momento! Queria-o demais! Tanto que o coração batia com tanta força! Desejava-o como quando o viu pela primeira vez, ou mais ainda!
“ – Não fales! Dança comigo! “
“ – Hum! Estamos juntos, meu amor! – e levou-a para a sala, apagando a luz.
“ – Melhor assim? “ – Sedutor como nenhum outro. Ela deixou-se levar, sentindo a aragem que vinha da varanda. A noite estava amena. Adorava o Verão, adorava estar assim, sentir aquele calor e o perfume dele a fundir-se ao desejo de ambos.
“ – Quero-te! “ – beijando-a docemente no pescoço, passeando a língua, descendo devagar. Baixou-lhe as alças do vestido que caiu no chão.
“ – E eu a ti! Fica comigo! Ama-me! – não queria pensar em nada senão no prazer que experimentava. Sentiu-lhe os seios intumescidos, ávidos de paixão, de ardor, de vontade dele.
Sabia que era assim que ela o queria e que depois seria ele a sentir como ela o percorreria, felina. “ – Era para jantar, meu amor! “ – dizia-lhe baixinho, afagando-lhe o cabelo, descendo as suas mãos, desabotoando-lhe a camisa.
“ – Temos todo o tempo do mundo! Agora sente-me cheio de desejo de ti e não penses em mais nada! Entrega-te a mim… “ – e beijava-lhe o umbigo e levantava-lhe a anca com as mãos e continuava a descer, sentindo como ela respirava agora, vendo como ia afastando as coxas firmes. Não lhe resistia! Deixava de pensar no que quer que fosse. Queria-a tanto e sabia que ela o desejava, que o amava e que iam ser um só e que nada mais acontecia senão eles, juntos, fundidos, para sempre. Deitou-a no tapete, foi por de novo a música, abriu mais as portadas da varanda.
“ – És linda! “
Ela sorriu.
“ – Vem cá, vem! “ – despiu-lhe as calças, e, ao tempo que lhe tirava os boxers, ia-o beijando.
Olhou-o! Não! Não queria pensar em nada, na dor que sentiu, naquela maldita gaveta. Não voltaria atrás, não iria chorar! Agora iria desfrutar daquele que poderia ter sido, daquele que deveria ter sido, o homem da vida dela. Já o tinha louco de desejo! Foi até ao seu rosto e mordiscou-o devagarinho.
“ – Sentes-me? Sentes como te quero? “
“ – Se te sinto? És tudo para mim, tudo! ”
E foram! Ele tomou-a, entrou nela e fizeram amor como se fosse a primeira vez, como loucos!
No final, mantiveram-se bem juntos, sem nada dizer.
“ – Fica assim só mais um bocadinho! Não vás já! O jantar pode esperar! Tomamos um banho, que dizes? Eu sei o quanto gostas de fazer amor no banho!”
Ela levantou-se, sem antes lhe beijar o peito e baixinho, disse-lhe:
“ – Tomamos, sim! Vai andando que vou só mesmo ver se está tudo pronto. Jantamos assim, com esta luz da cidade, à noite! Está tudo tão sereno, já viste?
“ – Não mais do que tu! Por mais que tente, a noite não consegue ser mais bonita que tu! Hoje, então, não sei… Estás ainda mais sensual! “ – e já a puxava de novo para ele.
“ – Tonto! Vai preparando o banho que já vou lá ter! “
Tinha a cabeça a mil! Mas nada a faria deter! Tinham-lhe dito que bastavam umas gotas. Se deitasse o frasco todo talvez adulterasse o sabor do vinho e ele notaria. Ou não! Estava demasiado empolgado com o momento. Não ia chorar! Fez um esforço enorme, susteve a respiração…
Agitou levemente a garrafa.
“ – Então? Não vens? “ – olha que te vou aí buscar e é mesmo na cozinha, gritou ele, rindo.
“ – Já estou a ir, meu amor! “ – e correu e abraçou-se a ele!
“ – Tens o coração a bater com tanta força, querida! Tu não me digas que o peru fugiu!
Queres que lá vá e lhe dê uma marretada? “ – e ria e pegou nela ao colo e beijou-a de novo, muito e deitou-a na banheira e ficou a olhá-la!
“ – Adoro ver-te assim! És só minha! És única! Promete que casas comigo! “
Ela sentiu de novo aquela dor e teve receio, tanto receio que ele notasse!
“ – Prometo! Assim que a minha situação fique resolvida lá na empresa, prometo-te!
Teremos todo o tempo do mundo só para nós, tal como agora. Não vens? “
“ – Não! Vou ensaboar cada bocadinho do teu corpo bonito, posso? Quero ter-te com os meus dedos, com as minhas mãos! “
A água disfarçava as lágrimas dela. Ele deu-lhe banho que ela saboreou com o maior prazer. Cerrou as mãos com força sentindo as suas unhas cravarem-se nas palmas. Não soluçou e ele não se apercebeu do quanto ela chorava. Enxugou-a com o maior dos cuidados, vestiu-lhe o robe e então sim, meteu-se na banheira para um duche. Estava feliz, estava com ela, não pensava em mais nada nem sequer ela sabia que havia algo para pensar. Importava aquele momento. Tudo o mais ficava lá fora. Sabia que era o maior dos sacanas, mas ela não, e, isso era o que tornava tudo mais interessante. Ela adorava-o, ele tinha-a e o resto? O resto resolver-se-ia ou resolviam por ele.Tinha sido sempre assim desde sempre, desde que tudo havia acontecido. Ia jantar, talvez fizessem amor mais uma vez, deitá-la-ia, iria embora e amanhã…nem queria saber. Estava ali a tomar um belo dum banho, desfrutando dum pedaço de mulher que o amava.
“ – Vais beber o melhor dos néctares! “ – disse-lhe – “ – O meu amigo sabe de facto que este é o meu vinho de eleição! Proponho um brinde, sim, meu doce? “
“ – A nós? “ – sugeriu ela.
“ – E há melhor motivo? A nós, a esta noite, a este jantar e principalmente, a ti, meu Amor, e aos dias todos que vamos passar quando casarmos! “
Os copos tocaram-se levemente, ele ergueu mais o seu –
“ – A ti! “ – e bebeu.
Ficou a olhá-lo, simulando beber.
“ – Belíssimo, não achas? “
Ela começou a servi-lo e ele bebeu mais um pouco.
“ – Só espero que gostes! “ – foi uma colega minha que me deu a receita. Nunca tinha feito mas como sei que ela é uma óptima cozinheira, pedi-lhe ajuda.
“ – Deve estar divino, tal como tudo que fazes.” – respondeu.
Fez um leve esgar, sentindo uma ligeira indisposição.
“ – Estranho! Este talher está pesado… “
“ – Pesado? Porque dizes isso? – perguntou ela, olhando-o atentamente.
“ – Não sei, querida! Está a custar-me a segurar. Parece que não tenho força nas mãos…”
“ – Foi do esforço de há pouco! “ – retorquiu ela a rir, maliciosamente. – “- Não me digas que já não aguentas uma noite mais animada?
“ – A sério! Vou levantar-me! Não estou muito bem. Não é o jantar, fica descansada. O jantar está óptimo! Sou eu, não sei!...Que sensação esquisita!…“
“ – Bebe um bocadinho mais de vinho, amor! Vais ver que já passa! Estavas tão bem!
Olhava-o atentamente. Queria olhá-lo! Na cabeça dela ia um turbilhão de coisas, a gaveta, a carta, a ida ao Instituto, aquela imagem que ela não esqueceria nunca, mas, sempre a fitá-lo.
Ele deitou-se no sofá, que ia ficar assim, que não tinha força…
Um silêncio ensurdecedor em torno dela.
Um sofá, ele, um corpo quieto.
Desligou a música.
Custou-lhe horrores vesti-lo.
Àquela hora já o prédio estava sossegadíssimo.
Optou pelo elevador de carga. Raramente era usado. Arrastou-o, rezando a todos os santos que ninguém se lembrasse de chegar fora de horas. Era dia de semana, seria improvável.
Estudou durante meses todo o movimento do prédio. Nada poderia correr mal. Havia alguém que não merecia que algo corresse mal. Bendito lugar de garagem que dava para dois
automóveis! Conseguiu enfiá-lo no lugar ao lado do condutor, o lugar do morto. Era louca! Lugar do morto! Era de facto o melhor lugar onde o poderia ter posto. Arrancou e foi até a casa dele, uns quantos quarteirões mais adiante de sua casa. Ele guardava o comando da garagem no guarda luvas. Rezou de novo para que ninguém a visse. Louvou aos santos que haviam sobrado por ele ter uma situação económica que lhe permitia ter uma vivenda isolada. Puxou-o para o lugar do condutor. Accionou o comando da porta garagem de novo, correu, saiu, olhou em volta, ninguém! Foi a pé até casa. Chorou de raiva, chorou de prazer, chorou de revolta, soluçou.
Amanhã chegaria mais tarde à empresa. Tinha avisado a amiga que ia à clínica. Consulta de rotina, coisa para duas horas, três, no máximo. Mas não! Iria ao Instituto fazer uma visita a alguém que merecia por tudo ser feliz, que tinha conseguido vencer! Chegou ao prédio e subiu até ao quinto andar pelas escadas. Arrumou tudo, deitou o resto do vinho na sanita e fez uma, duas, três descargas. Garrafa no lixo, CD no lixo. Tomou um banho, chorou muito e então sim, soluçou como nunca o fizera! Enrolou-se na toalha, foi ao quarto, abriu a gaveta e leu a carta uma última vez, a maldita carta que encontrou por um mero acaso no mesmo porta-luvas onde ele guardava o comando da garagem:
Meu caro,
Tal como me havias pedido conversei hoje com a tua mulher.
Volto a frisar-te que não deverias desmarcar-te desta situação e que deverias tê-la acompanhado. Fi-lo por ela, porque sempre me mereceu todo o respeito e por quem sempre nutri o maior dos carinhos. Por ti, pela tua atitude, pelo teu comportamento, sabes, não to escondo, não o faria., jamais! Conhecemo-nos desde miúdos e logo que me apresentaste aquela que veio a ser depois a mãe dos teus filhos, surgiu uma empatia imensa. Infelizmente estas malditas doenças acontecem e pior ainda quando tocam aqueles que nos são queridos mais custa dar o veredicto. Imperdoável o teu comportamento! Preparei-a o melhor possível. Vai precisar de todo o apoio porque o carcinoma é maligno e com mais azar ainda, o que não é vulgar, mas que pode acontecer, atacou as duas mamas. Já a encaminhei para o meu colega lá no Instituto e posso garantir que a equipa será a melhor possível! A partir deste momento, todo e qualquer acontecimento ser-te-á dado pelo Instituto. Tens sido visto cada dia com um novo relacionamento, sabes bem ao que me refiro e não posso, não devo e nem quero pactuar com esse tipo de comportamento. Dá graças a Deus teres uns sogros maravilhosos que tomam conta dos teus filhos. Lamento que te tenhas esquecido que se tens o que tens hoje, à tua mulher se deve. Sempre te apoiou, mesmo em situações que te foram tão adversas, e, tiveste tantas! Infelizmente a tua memória é curta tal como a tua noção de amizade, dedicação e sobretudo de Amor! Não vou alongar-me mais. De nada vale! Estarei com a minha mulher sempre ao lado da tua, para o que der e vier. De ti, por tudo o que sei e vi, manterei a devida distância e peço-te que não me procures porque não te darei qualquer resposta.
Sem mais,
Jaime Pinheiro Borges
Resposta ao Desafio por: Cris
1 comentário:
enjoa
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