maio 01, 2007

- Hoje matar-te-ei! – gritava ela a plenos pulmões, os olhos semicerrados, a boca raivosa. Ia pelas ruas e gritava-o a quem quer que fosse. Era uma mulher relativamente nova, contudo ninguém lhe adivinhava a idade, bastante bonita, apesar do bigodaço e das roupas sujas e rotas. Usava o cabelo castanho aloirado, desgrenhado e oleoso, meio escondido por um chapéu velho. Fosse Verão ou Inverno aquela gabardina, preta em tempos, acompanhava-a para todo o lado. - Hoje matar-te-ei! – repetia ela até à exaustão. Ninguém a levava a sério, obviamente, apesar de não se saber ao certo o que a tinha levado a andar assim pela rua, naquele espalhafato... E davam-lhe roupa e comida e até algum dinheiro. - Hoje matar-te-ei! – dizia ela no seu português claro e preciso, com uma tal dicção que só poderia pertencer a uma voz de rádio.O senhor Américo, que tinha uma loja dos trezentos, resolveu pô-la a trabalhar com ele, com contrato e tudo! Via nela a sua falecida filha, eram tão parecidas... Ela aceitou a custo desfazer-se da gabardina e vestir por cima da roupa uma farda, um bocado pimba, que o senhor Américo, alfaiate no passado, tinha criado lá para a loja. Era uma coisa linda de se ver, de cada vez que atendia um cliente dizia-lhe ela na sua voz de anjo entorpecido: - Hoje matar-te-ei! Obrigada, tenha o resto de um bom dia!Um dia, o senhor António lá a convenceu a ir a casa dele. Já lhe tinha oferecido cama e comida muitas vezes, recusava sempre. A esposa sorria de felicidade. Foi ela quem lhe tirou as roupas e as pôs no lixo, a enfiou de molho na banheira e a lavou com as próprias mãos, enxugou-a, e penteou-lhe o cabelo, que afinal era mesmo loiro. No fim mostrou-lhe o quarto que iria ser seu enquanto o quisesse. Ela sentou-se na cama e chorou que nem uma desalmada. A esposa do senhor Américo sentou-se à beira dela, abraçando-a como só as mães sabem fazer. Então, numa voz meio tremida, meio apagada, ela contou à bondosa senhora que um dia tinha sido violada pelo pai e que, quando se conseguiu libertar dele, lhe gritou a frase de todos conhecida. Saiu de casa e passou o dia a pensar na vingança. À noite, quando estavam à mesa, entrou em casa, agarrou no cutelo da cozinha e, chamando cabrão e filho da puta ao pai, surpreendeu-o com três machadadas na cabeça e fugiu. A mãe assumiu as culpas do crime, ao fim de um mês de prisão suicidou-se. E ela, adolescente, que nada tinha, sem nada ficou, errante pelas ruas. A esposa do senhor António, horrorizada, disse-lhe que agora ia correr tudo bem, que ela devia era esquecer o passado e pensar no presente e no futuro. P'ra começar, o melhor era deixar de dizer aos clientes que os matava, ou a loja ainda ia à falência. Riram-se as duas. E assim ficaram, mais um pouco, abraçadas, a sentir aquela humanidade que cura almas e afasta infernos...

Resposta ao Desafio por : Fábula

1 comentário:

Mónica disse...

muito bonito :-)