No 52...já ninguém mora !
A esta distância posso dizer, como está na moda, que naquele verão de 1966 eu era "uma mulher do meu tempo". Vivia nas Avenidas Novas desde que, seis anos antes, casara com o Pedro, um pediatra que começava a fazer sucesso em Lisboa.
Tinha um filho com quatro anos, o meu Jorge. Com o meu filho aprendia aquela forma de amor terno, uma suavidade de que já ouvira falar muitas vezes mas que nunca tinha conhecido.
Os meus pais viviam ainda em África e eu frequentei o Instituto de Odivelas desde os onze anos. Segui para a Faculdade de Letras e após a conclusão da licenciatura casei. Namorava com o Pedro desde o último ano do colégio. Toda a gente nos via como noivos e, embora ele fosse doze anos mais velho, conhecíamos muita gente em comum (as alunas de Odivelas faziam questão de apresentar-me irmãos, primos e amigos, impressionadas com o meu isolamento na então Metrópole), gostávamos do mesmo tipo de espectáculos, e eu, posso dizê-lo, era então encantadora. Os meus modos gentis e determinados tornavam-me a esposa adequada para um médico ambicioso. A nossa vida era harmoniosa. Tínhamos duas criadas, duas irmãs de Vila Franca, a quem eu e o Jorge nos fomos afeiçoando.
Em Abril de 1966 eu tinha acabado de fazer vinte e nove anos. Ainda tinha no sorriso a vivacidade que fazia as pessoas lembrarem-se do clima tropical que me vira nascer. O Eduardo era um artista plástico de trinta e três anos. Solteiro. Tirara o curso de Pintura nas Belas Artes e dava aulas num liceu de Lisboa. Gostava de acompanhar os miúdos, ver faculdades depontarem e por vezes vocações esboçarem-se. Fora do tempo das aulas e sua preparação, pintava, pintava muito. Quando o conheci, num jantar de amigos, agradou-me a paixão com que defendeu, contra as opiniões de muitos convivas, alguns movimentos artísticos. Da primeira vez que nos encontrámos, casualmente, numa pastelaria perto de minha casa conversámos um pouco e ele disse que a minha beleza era invulgar, que lhe fazia lembrar uma ruiva de Klimt.
No dia seguinte, entregou a uma das criaditas um cartão com o meu nome desenhado e o esboço de uma silhueta feminina de cabelos compridos. Ruivos, claro.Tudo se passou muito depressa. Em meados de Maio fui pela primeira vez a casa dele. Morava no nº 52 da Travessa de Santa Susana, uma casa de solteirão, uma casa onde o fogão era raras vezes utilizado e apenas o trabalho da mulher a dias, três manhãs por semana, impediam um caos mais aceso.
Ele referia-se a uma das salas como "o estúdio". Ninguém lá entrava. Havia-me falado desse aposento diversas vezes. Da primeira vez que entrei no nº 52 tínhamos um acordo: eu posaria, sentada num sofá, vestida de amarelo,com ligeiros reflexos dourados.
Sentei-me, de facto. Ele utilizou lápis. Eu permaneci quieta. Mas isso durou vinte minutos. Pouco depois, eu estava junto do Eduardo. Junto da tela. Das tintas de todas as cores. Eu estava descalça e nua e o meu corpo era o tecido para as suas inspirações. Eu observava, extática, recebia beijos e tonalidades várias na minha pele. E desejava que aquele estranho bailado continuasse, eu deitada no chão, como mar, ele acariciando-me os cabelos e beijando-me os ombros, como se me navegasse.
Passei a ir ao número 52, nas alturas em que o Eduardo estava em casa, sempre que conseguia sair de casa de forma discreta. Durante pouco mais de uma hora eu despia-me e ele pintava o meu corpo em telas ou então imprimia arabescos invisíveis na minha pele. Era quase o mesmo. Ele pintava os seus segredos mais ocultos através de mim ou coloria-os directamente em mim. E assim perseguia e capturava os meus desejos. Todos. Como se quisesse inscrever as nossas vontades na minha alma. Indelevelmente.
Aqueles momentos passaram a ser vertebrais para mim. Estávamos sós, ele tratava-me por Ofeliazinha (como o meu marido quando namorávamos) ou, mais romanticamente, por "meu mar". E dizia que nós vivíamos encasulados numa enorme bolha dourada, os dourados de Klimt, só nós, os nossos corpos, os lápis, os pincéis, as aguarelas, as nossas mãos...Um dia, percebi que não queria voltar para casa. Queria ficar ali, na nossa bolha dourada, no número 52. Só nós. Sem crianças nem maridos nem criadas só nós.
Ele falou-me ao ouvido, servindo-se de argumentos razoáveis. Que seria do meu filho, eu arrepender-me-ia, estava a ser insensata, e como me iria ocupar enquanto ele estivesse no liceu? Mas eu existia para aquela hora com o Eduardo. Aquela intensidade sensorial, estética, aquela alucinação incandescente transformava-me num eu diferente. Mais confiante e mais exigente. Quando chovia, chuva de verão, ele pedia-me que dançasse no saguão. Ele sentava-se na janela com um bloco e um lápis na mão, tentando segurar os meus movimentos e as gotas de chuva na minha pele. Reconheço que, para mim, a ideia se ser "a amante do artista" era estimulante. Mas, lentamente, eu fui desejando mais. Uma tarde apeteceu-me fazer-lhe o jantar. A mulher-a-dias deixara mantimentos, ela própria cozinhava para ele de quando em vez. Pedi-lhe, disse-lhe que seria engraçado estarmos os dois na cozinha. Ele não gostou e eu agora percebo que, quando uma mulher começa a desenvolver impulsos de domesticidade para com o amante, a sua história está a entrar noutra fase. Os conservadores dizem que isso acontece quando começamos a querer que eles durmam connosco, abraçados. Não concordo. Para mim é a necessidade da identificação caseira que denuncia a nossa verdade - já não nos sentimos completamente bem no nosso papel de amantes.
E eu estava cada vez mais agitada. Não me imaginava longe do meu filho, é certo. Mas o tempo sem o Eduardo era terrível. E as noites com o meu marido começaram a ser sinistras. Quando ele me tocava na camisa de noite e me murmurava a mesma frase de sempre, apetecia-me fugir. Inventei uma suspeita de gravidez, com as consequentes indisposições para me libertar, pelo menos duas semanas, daquela tortura. Mas, vinte dias depois, essa dúvida atingiu-me. Pensei que fosse sugestão e quando contei ao Eduardo, ele enlaçou-me a cintura e disse: "Ofeliazinha meu mar, não te apoquentes, tu estás como naqueles dias que antecedem, é só isto." Mas não era. E na nossa bolha dourada, dos dourados de Klimt, não cabia mais nada. Apenas arte e beleza. Apenas eu, nua e descalça. Apenas o Eduardo fixando na tela os meus gestos e as minhas expressões. Apenas o Eduardo tatuando a minha alma com o seu nome e a minha pele com o nosso desejo. Apenas a sedução. Apenas a minha vaidade de me sentir amada. Um berço e um tanque de roupa nada tinham a ver com o nosso casulo dourado nem com o nosso devir. Eu já o tinha compreendido. Há mundos que não se podem confundir.
Inicialmente senti-me zangada com aquela criança. Achei-a uma intrusa, a responsável pelo fim da minha fantasia romanesca. Tive uma gravidez difícil, muito tempo de imobilidade exigido, muito tempo para efabular, muito tempo para afagar medos e culpas.
O Pedro ficou feliz, sem nada perguntar. Nunca sonhou com a minha duplicidade. Eu era muito mais perversa do que ele. Sempre fui. E o Jorge ficou muito alegre, sempre tinha desejado um irmão. O Eduardo reagiu de uma forma estranha. Parecia que não queria que eu tivesse aquele bebé. Eu garanti-lhe que não tinha que se preocupar, que embora continuasse a pensar nele como "o meu amor", sairia da sua vida na ponta dos pés e voltaria discretamente ao meu lugar de esposa e mãe virtuosa. A Susana nasceu e eu senti que já nada tinha a ver com a mulher arrebatada que tanto arriscara. Nunca mais procurei o Eduardo. Durante muito tempo evitei aquele lado da cidade.
Um ano mais tarde recebi um telefonema breve. Era o Eduardo. Tinha sido convidado para um projecto ligado a uma escola de arte no Porto. Eu continuei a minha vida, o Jorge e a Susana cresceram, têm os seus próprios mistérios, suponho, o Pedro e eu envelhecemos. Sempre houve entre nós estima e respeito, apesar...apesar de tudo.
Na semana passada fui com uma amiga a uma loja de decoração recentemente inaugurada. Os problemas de trânsito levaram-nos a estacionar o automóvel numa rua paralela. Para meu espanto encontrava-me na rua do número 52. Já ninguém lá mora, está fechado.
Mas, gosto de pensar que no soalho do "estúdio" permanece um pedacito de carvão, invisível para os olhos humanos, que um dia, um pintor usou para desenhar uma mulher que achava tão bela como as ruivas de Klimt.
Texto enviado por: Alba
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