A cor de um momento
A memória já não é o que era. Até para pensar esta banalidade sentiu que o esforço feito era do tamanho dos anos sem-fim que cobriam o corpo em forma de quarto minguante.
O grão da imagem trazia até si lembranças de outras épocas. Os nomes surgiram-lhe como que saídos de um nada que transportou durante tanto tempo dentro de si. Era a mais velha, mas sobreviveu ao tempo, aos amigos e ao acumular de dias e noites que a transpuseram.
Agora sim lembrava aquela tarde de Verão com uma nitidez que a surpreendeu. Como o poderia esquecer?!? Foi a sua primeira festa de anos (seis ou sete, já não tinha a certeza) e reviu-se orgulhosa no seu vestido novo, de um rosa sem mácula e com um cone colorido a sorrir-lhe na cabecita. Tinha apagado do seu peito as lágrimas que se lhe ofereciam, envoltas num transparente papel de tristeza, em todos os aniversários anteriores. Hoje, apenas contava o bolo cremoso, as prendas cheias de fitas e laçarotes e os poucos amigos que lhe cantavam os parabéns. Juntos viviam felizes a primeira festa que partilhavam e prometeram que seriam sempre uma parte de todos os outros. A um canto os pais agradeciam comovidos à madrinha que da cidade grande levou os sonhos em formas de presentes para aquela menina que mal conhecia. A festa acabou, mas a ilusão de que a felicidade era possível permaneceu para sempre, mesmo quando os olhos não conseguiam admirar os raios de sol de tão cabisbaixos que andavam na terra que era preciso cultivar. Cresceu entre os montes imutáveis, as cores da natureza e com os amigos de sempre. Mas, a vida levou-os para caminhos diferentes e traçou-lhes destinos opostos…encontros fugazes, palavras mal traçadas acompanharam os anos que passaram uns após outros. A separação transformou-os em pessoas diferentes, cobriu de eras as lembranças de outros tempos, até que a Teresa lhe ligou a dizer que a Maria estava em coma no hospital.
Sentiu o rosto quente, humedecido por duas lágrimas que traçaram caminho até à camisola de algodão. Todos os dias prometia, a si mesma, que lhe ia ligar. Sabia que de todos ela era a mais carente mas nunca chegou a marcar o número…havia sempre algo mais importante para acabar e, afinal, "ela estaria lá amanhã"!
Atirou o casaco, com uma raiva contida, para o banco traseiro do seu carro e voou, apática, até ao hospital. Eles já lá estavam com o ar culpado de quem achava que o amanhã é sempre futuro.
A Maria era a mais nova e o seu sorriso permanente acompanhou-os durante a fase inicial das suas vidas. Souberam o como e o porquê, mas o vazio que se instalou entre todos eles permaneceu. Era preciso voltar ao passado, lembrar a promessa feita para acompanhar a doença da Maria. Não chegou a abandonar a cama do hospital, mas abriu os olhos para juntar as suas mãos e, com o seu sorriso, uni-los mais uma vez.
A vida passou por todos, sem o peso da solidão de outrora. A tempestade cessou, o vento soprava cálido como uma carícia em fim de tarde de Verão a abraçá-los um a um.
Dividiram os seus dias numa soma de afectos que impediu o crescer de um abandono que ameaça inundar as suas vidas.
Havia um sorriso calmo e sereno em todos os rostos de que se despediu. Ela foi ficando com sulcos vincados como uma rota traçada no mapa que era a sua pele, com névoas de Inverno a enganarem os olhos cansados e o esquecimento a esculpir o vazio que paulatinamente a invadia.
Olhava as mãos cheias de negritude, cobertas com a cor de um momento antigo, em forma de uma foto perdida no baú das lembranças. A fuga tinha sido lenta, mas dolorosa, os que receberam o seu nome e em quem corria o seu sangue esqueceram-na, como ela se foi esquecendo dos nomes, dos rostos, das situações…de si mesma.
A doença apanhou-a desprevenida e cobriu-a com as suas garras.
Por vezes, tentava dar uma história a cada ruga que lhe moldava a mão, mas era um esforço tão grande e tão inglório que rapidamente esquecia o seu propósito. Foi mais fácil saborear a felicidade que esta imagem de quatro crianças de olhares arregalados, corroída pelo tempo, lhe proporcionou. Levou-a até ao peito e fechou os olhos muito devagar… afinal há fragmentos de felicidade que ninguém consegue apagar!
Por: Carla Marques
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