Desde então
Desde então por cada prazer uma ruga. Estranha esta contabilidade do céu. Dar e receber. Rugas pelos nossos prazeres e rugas pelos prazeres dos outros. Um comércio tradicional. Um alegria no tempo a trazer lágrimas hoje. Ou o contrário. Passos que não dei para que eles dessem passos mais firmes e seguros. Ilusão, claro. É por esse lado que vão as minhas mãos que já perderam a eficácia e têm agora o passado inscrito. Numa estranha linguagem escreveu-se aqui um texto que define a minha perda. O meu diálogo violento com o tempo. O meu crédito de ternura. A fotografia fica parada e trai-me. Põe na minha mão a potência do passado. Os sonhos. Quando ainda tudo era possível. Mesmo que a desconfiança aconselhasse a não esperar.
Desde então por cada beijo um desgosto. O ofício a dobrar o músculo sobre a obrigação. Os passos doridos pelo cansaço diário de não parar, de não dar tempo ao pensamento nem à dor. Tudo a equivaler-se na oração já desesperada. Para quê, Deus? As mãos fizeram o seu trabalho e andaram sempre próximas da verdade. Por isso trazem em si toda a história. Contam-na à sua maneira em gestos cada vez mais soletrados. O passado perde importância à medida que o futuro escasseia.
Desde então por cada surpresa uma dor. Não sobraram intenções. Não sobrou a volúpia de querer vencer. Não sobrou nenhum vestígio do desejo. Dizem que a cada sete anos a matéria que nos faz é toda renovada. E com a matéria vão as memórias e os desejos. Vão também os sons que se perderam e as vozes que atravessavam a alegria das conversas. Coisas que vêm do nada e a ele voltam. Só a matéria, que se renova cada vez mais disforme, permanece moldada à pressão das intempéries. E as mãos. As mãos permanentemente a negarem-nos.
Desde então por cada dia uma derrota. O sol a queimar o rosto e a esperança. A evaporar o amor e as amizades. A derreter a firmeza de laços provisoriamente eternos. E as notícias da noite a falarem de uma terra cada vez mais povoada. E o meu horizonte cada vez mais vazio. Os passos a serem cada vez mais curtos e vacilantes. E nenhum gesto de atenção a esta sobra do tempo. De repente, ainda somos, mas já não somos. As vozes já só se dizem para nos instruir, para nos ensinar o que não precisamos de saber. O que sabemos já não interessa.
Desde então por cada pensamento uma angústia. Vidas geradas para tentar. Mundos novos a descobrir. Frases novas a escrever e contar. Cumprir o estranho destino de ser. Estranha esta contabilidade do céu que só nos deixa conhecer o futuro depois, que nos dá o sonho para nos desiludir, que nos renova para nos enterrar, que nos alimenta para nos escravizar, que nos solta para nos perseguir, que nos dá a memória para esquecer, que nos dá a voz para mentir, que nos dá os sentidos para nos submeter.
Desde então por cada filho um universo.
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