janeiro 13, 2007

DESAFIO
(Textos enviados)
Baixo os olhos para a tristeza pensativa desta chávena de café. Começo por pintar uma tela feita de retalhos dos sentidos, com gestos fortes, mas sem negrume.

Ponho nela o esquecimento de quem já não se vê nas águas turvas deste espelho, de quem vai perdendo o norte à vida e à plenitude das suas formas, esquecendo ao mesmo tempo os ecos da sua pele e a memória esmorecida do sexo sem angústia.

Pinto em degraus todos os passos sem audácia, todos os gestos perdidos e regresso de súbito à mesa de café, onde descansa taciturna a chávena vazia...
Meu querido
Na tua ausência os dias passam e deixam um vazio. Como se fossem retalhos de uma manta, ou fragmentos de uma tela, e não consigo colar, ao fim do dia, as horas que são retalhos e fica o dia incompleto.
Sinto-me tão triste que me sento nos degraus da escada junto à nossa porta, a pensar na minha vida, e o teu amigo António, que decidiu não voltar ao Norte e tentar a sorte aqui, diz-me:
- Ele não te quer assim triste, anda vamos beber um café.
E eu vou porque sei como vocês são amigos, e porque ele me faz lembrar de ti. Tem gestos tão parecidos com os teus, como o pegar na chávena e não na asa, para beber e ao mesmo tempo sentir o calor do café, e falamos os dois de ti e de mim e como o espelho me diz que estou mais gorda, e ele não que não, que não é verdade ainda.
E ontem perguntou-me se já te tinha contado o que aconteceu há dois meses, quando ele me salvou de morte certa ou coisa pior ainda, e não contei porque ainda fico a tremer e quase perco os sentidos e a caneta só de pensar nisso, por isso não te contei nada antes. Foi num dia que fui com a Irene, às compras, depois do trabalho, e quando chegava a casa e subia devagar a escada, porque me sinto mais pesada, a luz apagou-se quando eu estava entre o 1º e o 2º andar, e tudo ficou tão escuro que tive medo de dar um passo em frente ou de voltar atrás.
E o negrume na escada era o espelho do meu medo, e toldava-me os gestos, e fiquei parada, colada á pedra do degrau que pisava, perscrutando o escuro, aterrorizada.
De repente a luz acendeu-se, ou recuperei os sentidos, e vi o António descomposto de raiva a dizer,- Bandidos. A audácia. E na luz as nossas vozes fizeram eco, a minha e a do António, e desceram a casa da porteira que me viu tão desfalecida que foi buscar um copo de água, e disse: - A menina está bem? E o António que sim, que eu me tinha assustado e caído por isso estava assim com a roupa amarrotada e a blusa aberta…Se não fosse o António, meu querido, quem sabe tinham-me estropiado como naqueles filmes de terror que eu gosto tanto de ver.E nunca mais saberias nada de mim, nem porque estou mais gorda, nem que fiz um teste que diz que vais ser pai. O António manda-te um grande abraço. Se não fosse ele não sei que seria de mim aqui sozinha há dez meses, tão triste sem ti e desamparada sem ti.


Sem comentários: