junho 28, 2007

Desafio (texto II)

"No 52...já ninguém mora !"
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No 52…já ninguém mora?

Desde que me conheço que passo por aquela rua.
Por isso, aquela casa faz parte do meu quotidiano. O 52, do Tio João do Barro.
Chamavam-lhe assim, porque das suas mãos, gretadas, mas hábeis, saíam, para a luz do dia, bonecos moldados em argila, que mais ninguém conseguia fazer.
Habituei-me a ver aquelas duas portadas, onde duas pequenas janelinhas, decoradas com umas ingénuas grades brancas, de voltas e reviravoltas, pareciam sorrir para quem por ali passava.
As portas estavam invariavelmente abertas, porque o Tio João do Barro fazia questão de as pessoas entrarem à vontade, para verem os seus bonecos.
Apenas para os verem, pois acho que nunca vendeu nenhum,
E ficava particularmente feliz quando havia crianças a admirarem as obras, exaltadas e animadas, perante a bizarria da maior parte delas.
-Olha aquela mulher tem bigode!
Ó Ti João, Há mulheres com bigode?
- Vê, aquele pássaro que tem dentes dentro do bico.
Ó Ti João, não pode ser!
E o velho João do Barro, ria, contente, e lá explicava à miudagem, que “aquilo eram coisas que lhe passavam pela cabeça”.
Mas um dia, ao passar por ali, vi, em frente daquela porta fechada, um ajuntamento de pessoas, que murmuravam, baixinho.
-Coitado do Tio João do Barro, tão boa pessoa.
-Foi de repente. Ficou-se como um passarinho, durante a noite.
A partir daí, nunca mais a porta se abriu.
Pouco a pouco, a casa foi-se degradando. Hoje caiu uma telha, amanhã um bocado de caliça.
A porta, foi mesmo apodrecendo, de tal modo que alguém, sei lá quem, para evitar que o interior começasse a ser devassado pelo pessoal do costume, pregou-lhe dois bocados de madeira, muito toscas, que deram à moradia, um ar ainda mais triste e abandonado.
Agora, já nem olho para aquela porta, pois sei que, no 52, já ninguém mora.
É o que dizem.
Mas, afinal, isso não é verdade.
Só eu sei que, à noite, espreitando pelas frestas da velha e estragada porta, é possível ver estranhas sombras bailando, ao mesmo tempo que se ouvem risos cristalinos e canções numa língua que ninguém compreende.
Só eu sei que os bonecos que o Tio João do Barro fez durante a vida inteira, tal como os bonecos de madeira do velho Gepeto, ali se reúnem, para relembrarem o autor dos seus dias.
Afinal, no 52, ainda moram o sonho e a saudade…

Texto enviado por: Peciscas

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