novembro 21, 2007

Vamos ao teatro

"Falatório do Ruzante de Volta da Guerra"

Enquadramento histórico
O exército da República de Veneza fora desbaratado em 1509 na desastrosa batalha da Ghiara d’Adda, e serão os camponeses que, em 1515, recrutados em massa, irão salvar Pádua do cerco dos exércitos imperiais. As consequências são, porém, terríveis, resultando em fome, prostituição e outras calamidades.

Sinopse
Ruzante chega da guerra e desenvolve um monólogo, em que a condenação da guerra ressalta claramente. Depois surge o compadre, Menato, um camponês que adquira bens e posses. Trata-se de um diálogo em que Ruzante, perante o olhar de troça de Menato, vai fazendo descrições dos seus "feitos" e "heroicidades" na guerra. E perguntando ansiosamente pela antiga mulher, Nhua, que, com toda a evidência, é agora uma das prostitutas surgidas do êxodo camponês para a cidade. Nhua passa na rua e rejeita claramente Ruzante que nada tem para lhe dar, como anteriormente também não tinha grande coisa. Depois...

Sobe o pano, a peça vai começar !

Cena 1

Ruzante - (Sai ofegante do fundo e avança até quase ao proscénio. Vem lazarento e sujo, coberto de pó. Olha à sua volta, enxugando o suor que lhe escorre debaixo do elmo.) Ah! Até que enfim cá estou! Tinha mais vontade de aqui chegar, do que uma mula tísica e cheia de catarro tinha de trincar erva tenra. Vou pôr-me como novo. E vou-me fartar de gozar com a minha Nhua que veio p'ra cá fazer pela vida.
Raios partam as batalhas, a guerra, os soldados e os soldados e a guerra!
A mim é que eles não me apanham mais lá na frente! Nunca mais hei-de ouvir a barulheira dos tambores, nem das cornetas, nem os gritos de alerta...
Assim nunca mais vou ter medo, pois não?
Quando ouvia berrar "às armas" ficava como uma perdiz que tivesse apanhado uma chumbada no papo.E as espingardas e as artilharias...
Agora estou fora de alcance... só se me acertarem na peida! E cavar das balas?
Vou mas é dormir o que não dormi e comer até rebentar.
Porra, que quase não caguei em paz.
Ai, Senhora do Pópulo, cá estou eu são e salvo. Gaita, que vim depressa! Acho que papei mais de vinte léguas por dia. Pus-me em três dias de Tremona até aqui. Ah! Mas não é tão longe como isso! Dizem que de Tremona a Brecha são treze léguas. É um pulito! Nem chegam a seis. E de Brecha a Pixaria seriam para aí umas dez. dez? Nem pó! Aí cinco, se tanto. E quantas são de Pixaria aqui? Eu levei um dia. É versão de Pixaria aqui? Eu levei um dia. É verdade que andei a noite toda. Ah pois!Nenhum pato bravo voou tanto como eu andei. Virgem Santíssima, que bem me doem as pernas. Mas nem sequer estou cansado. (Deita-se) Chiça! Era o medo que me zurzia, foi o desejo que me trouxe. As botas é que pagaram. Vamos lá vê-las. (Observa as solas das botas uma de cada vez) Eu não te dizia? Que o cancro me coma! Estão a ver como fiquei sem uma sola? Foi isto que ganhei na guerra! Pois, pois que o cancro me coma. Mesmo com o inimigo no cu, não devia ter corrido tanto. Ganhei muito com isto. (Olha à sua volta) Bom, talvez por estas bandas consiga deitar as mãos a um par de botas, como fiz com estas que roubei a um vilão no campo de batalha. É verdade, quanto ao saque, não era mau ser soldado, o pior eram os cagaços que nos pregavam. Que se lixe o saque. Estou aqui são e salvo e mal acredito que seja eu. E se estivesse a sonhar? Era mesmo uma merda! Sei muito bem que não estou a sonhar.
Então não embarquei em Buzina? Pois se até fui à Senhora da Saúde pagar a minha promessa. E se eu já não fosse eu? E se eu tivesse sido morto na guerra e fosse só a minha alma penada? Havia de ser bonito! (Tira rapidamente da sacola um naco de pão e dá-lhe uma dentada) Não, c'os diabos, as almas penadas não comem. (Com a boca cheia) Sou eu e bem vivo. Assim soubesse onde encontrar a minha Nhua e o meu compadre, que também cá está! Agora, até a minha mulher vai ter medo de mim, carago. Tenho que lhes mostrar que me tornei um valentão. Seja como for, sou mesmo um valentão, que remédio tinha eu. O meu compadre vai fazer-me perguntas da guerra. C'um raio! Vou-lhe contar das boas. (Pausa; olha para o fundo) Mas parece-me aquele. É mesmo ele. Compadre! Ó compadre! Sou eu, Ruzante, o seu compadre!

Continua...

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